amores expresos, blog da CECÍLIA

quinta-feira, 10 de maio de 2007

God is coming. Look busy.

[QUARTA-FEIRA, 09/05] - Tá, eu fui ver o Ratzinger. Não àquela hora da tarde em que ele fez sua "aparição" e disse em sonoro português "São tantas emoções etc. e tal", mas à noite. Tinha visto na TV que equipes de jornalismo dos diversos canais de televisão estavam de prontidão no Largo de São Bento e pensei que as chances de ser assaltado, estripado e sodomizado (nessa ordem, please) seriam menores. Então, desci ao centro pra ver o Ratzinger. Mas claro que eu sabia, desde o momento em que, congelando, saí do hotel, esfreguei as mãos e as meti nos bolsos do casaco, enfim, eu sabia que não veria o Ratzinger porque o Ratzinger já estaria dormindo ou vendo televisão ou se preparando pras gafes presidenciais que fatalmente ocorrerão hoje no Palácio dos Bandeirantes. Mas eu queria, sabe como é, dar uma olhada no ambiente e tal. E se, por um acaso, Ratzinger reaparecesse, ora, eu iria, sei lá, pedir a ele que indicasse uns lugares bacanas pra Cissa visitar em Berlim. O tipo de coisa que eu jamais pediria ao antecessor dele. Karol, todo mundo deve se lembrar, estava ocupadíssimo salvando o mundo do comunismo ou levando chumbo ou perdoando que tinha largado chumbo nele. Karol parecia uma entidade, um personagem etéreo, intangível, mesmo no fim da vida, mesmo depois de ficar muito doente. Não é por acaso que tenha sido e seja ainda tão popular. Até mesmo a dor dele, tão terrivelmente visível, não me parecia palpável. Ratzinger, por sua vez, é um sujeito palpável, ou pelo menos eu tenho essa impressão. E muito culto, sim. Escreve bem pacas. Eu adoraria, de verdade, tomar um café com Ratzinger (pode ser hoje, no Ibotirama, às quatro?). Eu disse isso ao pessoal (três garçons e dois fregueses) num boteco da Bela Cintra, ontem, e quase fui linchado. Mas esse é o ponto: eu posso discordar pontualmente de quase tudo o que Ratzinger acredita e prega, mas, democraticamente, adoraria me sentar com ele no Ibotirama, hoje, às quatro, pra tomar uma cerveja (café para o papa, sim?) e conversar sobre, sei lá, Sebald, futebol, Wittgenstein e curiosidades alemãs. Prefiro mil vezes bater um papo com Ratzinger a me submeter a um desses papos esquerdistas ou direitistas de botequim, sabe? Porque um dia desses um imbecil me viu com um livro do Philip Roth e (depois de ser informado da nacionalidade do autor) desandou a fazer um discurso anti-americanista de dar dó. Que tipo de idiota deixa de ler autores norte-americanos por culpa da desastrosa política externa do atual governo de lá? Eu, hein? Sugiro a essa gente que, se quer mesmo protestar, compre uma coca-cola, despeje o conteúdo num copo e meta muito, mas muito gelo. O protesto anti-americano perfeito: meter gelo em coca-cola. Mas eu falava de Ratzinger.

Que, reitero, eu não vi. Dei uma volta pelas imediações do Mosteiro de São Bento, estava frio demais e acabei voltando pro hotel. Subindo a Augusta, vi uma coisa de louco. Um rapaz negro, um sem-teto, estava deitado na calçada, mal e mal coberto naquele frio que fazia ontem (oito graus ou menos), quando teve a cabeça pisada por um outro rapaz, um rapaz com outros rapazes, um rapaz entre os seus, nenhum deles um sem-teto, evidentemente, e esse rapaz pisou na cabeça do rapaz negro e saiu correndo com a turma rua acima, rindo e gritando, e o rapaz negro se levantou e berrou "Vocês vão se ver é com Deus!", e eu não pude deixar de pensar, quando passei por ele, ele já se deitando e se cobrindo novamente, eu não pude deixar de pensar que, do jeito que vão as coisas, a grande merda é que talvez seja Deus quem tenha de se ver com aqueles caras. O mais impressionante, contudo, nem foi isso. O mais impressionante foi que, no momento em que vi o rapaz negro se levantando, eu achei que ele ia xingar aqueles imbecis, talvez correr atrás deles pra bater um pouco e apanhar um monte, mas não. O rapaz teve a cabeça pisada e se levantou não pra xingar e brigar, mas, caramba, pra falar de Deus. Talvez tenha sido um sinal. Eu, que não sou católico, não sou cristão, não sou nada, não sou ninguém, eu tive, ontem, a oportunidade de ter uma epifania. Oportunidade que perdi. Deixei passar. Porque, cheio de raiva, indignado e frustrado, louco da vida por não poder fazer nada, nem mesmo ajudar o sem-teto a apanhar dos caras, porque o sem-teto não quis brigar, não quis nem mesmo xingar, enfim, eu deixei a epifania evaporar porque só via aquela cabeça sendo pisada e aqueles imbecis correndo rua acima, rindo e gritando, e eu acho que, na minha vida inteira, jamais vou me esquecer do som, da barulheira que aqueles desgraçados faziam enquanto subiam a Augusta depois de, gratuitamente, pisar na cabeça de um outro ser humano, pisar e rir e gritar e rir e correr e rir. Sei não, Ratzie, mas acho que essa merda toda, ah, essa merda toda não tem jeito, não.

Mas, se tiver um tempinho, não esquece: às quatro, no Ibotirama. Vou ficar sentado a uma mesa bem na esquina, tremendo de frio e de raiva, crente de que não acredito mais em porra nenhuma. E aí você vai sorrir e dizer: Fala uma coisa que eu não sei, dumm. E, veja só, pode até ser que eu me sinta um pouco confortado.

[A expressão (ou coisaqueovalha) God is coming. Look busy eu roubei daqui.]